segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A Máquina do Mundo

Carlos Drummond de Andrade
E como eu palmilhasse vagamenteuma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindona escuridão maior, vinda dos montese de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriupara quem de a romper já se esquivavae só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,sem emitir um som que fosse impuronem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeçãocontínua e dolorosa do deserto,e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcendea própria imagem sua debuxadano rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidandoquantos sentidos e intuições restavama quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,se em vão e para sempre repetimosos mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,a se aplicarem sobre o pasto inéditoda natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz algumaou sopro ou eco ou simples percussãoatestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,em colóquio se estava dirigindo:"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,mesmo afetando dar-se ou se rendendo,e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riquezasobrante a toda pérola, essa ciênciasublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,esse nexo primeiro e singular,que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardenteem que te consumiste... vê, contempla,abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,o que nas oficinas se elabora,o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,os recursos da terra dominados,e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestreou se prolonga até nos animaise chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,dá volta ao mundo e torna a se engolfar,na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,suas verdades altas mais que todosmonumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solenesentimento de morte, que floresceno caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relancee me chamou para seu reino augusto,afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em respondera tal apelo assim maravilhoso,pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelode ver desvanecida a treva espessaque entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadaspresto e fremente não se produzissema de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,e como se outro ser, não mais aquelehabitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontadeque, já de si volúvel, se cerravasemelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;como se um dom tardio já não foraapetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,desdenhando colher a coisa ofertaque se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousarasobre a estrada de Minas, pedregosa,e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,enquanto eu, avaliando o que perdera,seguia vagaroso, de mãos pensas.

Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.



aRTE eSCRITA :)

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